O Coração Ainda Bate. Um encontro

Inês Meneses volta ao amor, essa soma de tantos encontros.

Há amores dos quais nada resta, amores menores, acasos que não passaram de uma soma de rimas fáceis ou afinidades coladas a saliva (também trocada). Foram, primeiro, afinidades, depois, equívocos. Avançamos sem dano com isso. Aceitamos o erro ou somente o tempo que foi pouco fértil. Depois, há amores que, não tendo sido os maiores ou melhores, foram qualquer coisa: uma combinação física difícil de explicar, breves instantes em que levámos a sério as palavras 'para sempre', uma beleza só inteligível ao nosso olhar. São grandes esses amores, ainda que não pareçam.

Ainda que não tenha havido sequer uma promessa que galgava o presente e se estendia para a eternidade. Estou em crer que todos nos lembramos de alguém que se mantém na nossa retina, não sendo a menina ou o menino dos nossos olhos. Alguém que entrou um dia e ficou. Ou então, ainda mais curioso, não ficou, mas um dia voltamos a ter esse embate visual e percebemos que nunca se foi embora. São pessoas para as quais não arranjamos muitas explicações sobre a sua entrada, saída ou permanência na nossa vida. Pessoas que são um frame que parece distorcido para os outros, mas que nos lembra um momento perfeito. Quantos desses instantes não guardamos afinal?

Agora mesmo concluo que podemos viver a vida dedicados a um amor, mantendo na memória uma sombra viva dos que ficaram pelo caminho. Como se o amor fosse, na verdade, a soma de tudo o que vivemos: não só os que estão ao nosso lado, como aqueles que ficaram para trás – como quando olhamos do retrovisor para o rasto deixado. O amor é esse rasto: vamo-nos afastando mas eles estão lá, agora longe. O caminho trilhado não se apaga.

É curioso que podemos ser sacudidos pela memória num encontro inusitado e tudo fica tão estranhamente vívido que chega a ser perigosa essa forma como o presente se entrelaça com o passado. Essa união tende a romantizar momentos que estiveram até próximos da dor, mas quanto do amor guardado não é inventado pela nossa memória? Parecemos muito mais felizes, agora de relance, do que quando o olhar seguia o amor em directo. O amor podia ser uma VHS que puxamos para trás, escolhendo o instante em que queremos parar. É sobre isso o cinema. Ainda não vivemos sem ele.

Os amores que seguem connosco avolumam-se num arquivo raras vezes visitado. É melhor assim, para não trazermos complexidade ao que já é tão difícil: amar exige-nos tanto que, se ao presente juntarmos o passado, temos um labirinto de onde, receio, não vamos conseguir sair. Pior, não vamos querer sair.

O amor é esta combinação do que foi conseguido e do que ficou por viver. Temos de saber que tudo nos habita, não vá um fantasma visitar-nos e ficarmos perplexos com isso. Se nos cruzamos com um amor do passado, e aquela cara ainda nos estremece por dentro, não há nada de errado nisso. Acho muito pior as pessoas que reencontramos, com quem dormimos, não serem hoje nada, nem um hálito ou um perfume. Nada.

O amor que vivemos neste momento acaba por ser a herança do que vem detrás. Não o viveríamos pleno (ou da forma possível) se não tivéssemos passado por outros rostos, outros enganos, outras tentativas quase felizes. Gosto de ver o amor como um todo, sem diabolizar o que ficou para trás. É que não ficou totalmente. Encontramos alguém do outro lado da rua e tudo nos parece incrivelmente presente. Não há mal nenhum nisso. Uns e outros tivemos de seguir em frente. Triste é o amor que, no reencontro, não traz uma noite que não nos sai da memória. Ninguém precisa de saber que é assim. Só nós que o vivemos.

O coração ainda bate.

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